quinta-feira, maio 19, 2005

Sonho

Ainda às voltas com o sonho. Há uma experiência que me marcou, tinha aí uns 14 anos e o 25 de Abril tinha acabado de acontecer.Sempre gostei de escrever e o meu sonho era escrevinhar pelo futuro fora em máquinas de ferro, a minha lua era o tic tic das teclas a bater vigorosas contra a maciez do papel imprimindo aquelas pequenas letras de imprensa pretas que o gancho da máquina por velhice ia desbotando nas pontas.Via-me noite dentro amachucando folhas A4 de papel branco meias escritas, concentrada nas imagens e nas histórias que as palavras uma a uma iam desvendando, formando, transformando ,prosseguindo.Nessa altura a minha mãe foi comigo a uma rua íngreme para a Mouraria (sei agora porque lá voltei muitas vezes, na altura era a rua onde o meu ofício ia finalmente ganhar um estatuto de seriedade) e entrou comigo, tímida, numa loja escura onde se vendiam máquinas de escrever em segunda mão. Saímos de lá com uma caixa de plástico duro, azul escura, que cobria uma Olivetti com alguns anos de uso mas em muito bom estado. O peso da caixa na minha mão era o sinal indelével de um sonho que se concretizava, de uma responsabilidade que para mim crescia e me mostrava que algo de novo e ansiado estava prestes a iniciar-se.
Na escola, tinha uma professora de Português alta, que vestia habitualmente de negro, amante de literatura e cuja perspicácia sempre me fascinava, não me lembro bem do seu nome, sei que tinha umas olheiras profundas e que usava para disfarçar um pó de arroz muito claro que lhe dava ao rosto um ar de vedeta do cinema mudo, meio frágil meio 'fantásmico'. Um dia, mandou para casa uma redacção de tema livre, eu exultei, como eu gostava de escrever e como me entusiasmava mostrar-lhe como escrevia, saber a opinião dela, porque tinha-a como justa e como sensível à boa escrita. Fui para casa, já tinha alguns textos acabados, um deles, particularmente era-me muito precioso, não só pelo estilo como pelo conteúdo que espelhava bem as minha preocupações e o tema sobre o qual não sentia qualquer dificuldade em espraiar sem limites a imaginação. O texto chamava-se "O Sonho" e era sobre isso mesmo, sobre a necessidade de sonhar, sobre o gosto de sonhar. No dia seguinte, a professora pediu que entregassemos os trabalhos e,nervosíssima, lá entreguei o meu. Quando, passados uns dias foi feita a avaliação e respectivo comentário, percebi que estava tudo errado, algo se estava a passar que me era estranho. A professora começou por comentar os melhores trabalhos , todos eles falavam sobre a Revolução que acabara de se realizar, o 25 de Abril, as tropas, a liberdade. O meu texto ficou perdido lá pelo meio, quando chegou a minha vez, a professora olhou para mim com um ar desinteressado e exclamou " Como é que pode escrever sobre este tema quando se estão a passar coisas tão importantes!"
Percebi que aquela redacção era o meu sonho desfeito, quando voltei a olhar para ela, pareceu-me tudo aberrante e sem sentido, deitei-a fora, não amaldiçoei o 25 de Abril. Só fiquei triste.

11 Comments:

Blogger VdeAlmeida said...

Há pessoas cegas. E essa professora era certamente uma das mais cegas. Porque não conseguiu ver que o 25 de Abril era um sonho

11:14 da manhã <$BlogCommentDelete>
Blogger  said...

hmm...
acho que os sonhos, são isso mesmo, ou seja, na sua conotação, uma realidade que nos é muito própria, alheada da realidade dos outros, por isso é que muitas vezes não são compreendidos e são julgados como desfazados dos "sonhos" dos outros.
podes continuar a escrever manhã, há sempre alguém que tem o prazer de te ler =)

11:38 da tarde <$BlogCommentDelete>
Anonymous Anónimo said...

bis

11:42 da tarde <$BlogCommentDelete>
Blogger manhã said...

Yardbird, boa perspectiva,se assim fosse tudo bem.

Pé.Não aja dúvida, comentário certeiro.Diria que tens mão e obrigada,fico contente por saber, é recíproco.

Pegada, eheheh

9:14 da manhã <$BlogCommentDelete>
Blogger SalsolaKali said...

Tu eras apenas uma formiguinha que inverteu o sentido...
E de facto há pessoas que não medem as palavras, principalmente quando deveriam ter consciência de que a opinião delas pode mudar uma vida...
Mas, nunca é tarde para concretizar um sonho e consolidar uma escrita :)
BJ SK

10:02 da manhã <$BlogCommentDelete>
Blogger manhã said...

Sabes Salso, não julgo as palavras da professora. Ela, na altura tinha o marido preso, havia certamente alguma razão no que disse, mas não toda a razão...e o facto de ser apenas meia razão, é que me baralhou.Bj Bom fim de semana.

10:22 da manhã <$BlogCommentDelete>
Blogger nobody said...

o que importa é a nossa visão de um momento... pela vida fora há muitas "professoras de português"... ainda que ninguém nos leia, importante é que o que escrevemos nos preencha e nos traduza!

1:35 da tarde <$BlogCommentDelete>
Blogger manhã said...

Nobody, sê bem aparecido! Penso que ninguém escreve só para si, precisa do reconhecimento dos outros, pela minha parte, escrevo por necessidade interior mas também escrevo para comunicar.

4:21 da tarde <$BlogCommentDelete>
Blogger Peg solo said...

esse teu ultimo comentario da outro post.. considera um desafio ;)

7:47 da tarde <$BlogCommentDelete>
Blogger manhã said...

Pegada,
Não é verdade? Nem sequer quero saber porque escrevo, é assim, há coisas que não pergunto as razões, porque elas não acrescentam nenhuma inteligibilidade aos factos,pelo contrário, prefiro pensar em naturezas predestinadas, coisas misteriosas e fatais, por aí!

4:17 da tarde <$BlogCommentDelete>
Blogger Peg solo said...

podemos sempre dizer é giro escrever, são giras as palavras, sem questionar mais ;) e q as coisas sejam misteriosas... quanto ao fatais fico semi-arrepiada :S

2:59 da tarde <$BlogCommentDelete>

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