" Com que posso prender-te?
Ofereço-te ruas estreitas, poentes desesperados, a lua dos subúrbios miseráveis.
Ofereço-te a amargura de um homem que olhou durante muito e muito tempo para a lua solitária.
Ofereço-te os meus antepassados, os meus mortos, os fantasmas que
os vivos honraram no mármore: o pai do meu pai morto na
fronteira de Buenos Aires com duas balas nos pulmões,
barbudo e morto, embrulhado pelos seus soldados numa pele
de vaca; o avô da minha mãe - com vinte e quatro anos -
encabeçando uma carga de trezentos homens no Peru, agora
fantasmas em cavalos desaparecidos.
Ofereço-te quaisquer visões que os meus livros possam conter,
qualquer bravura ou humor da minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te esse núcleo de mim mesmo que guardei fosse como fosse
- o coração central que não lida com palavras, não negoceia
com sonhos e é intocável pelo tempo, pela alegria, pelas
adversidades.
Ofereço-te a memória de uma rosa amarela vista ao pôr do Sol, anos antes de teres nascido.
Ofereço-te explicações de ti, teorias sobre ti, novidades autênticas e
surpreendentes a teu respeito.
Posso dar-te a minha solidão, a minha obscuridade, a fome do meu
coração; estou a tentar subornar-te com a incerteza, com o perigo, com a derrota."
Jorge Luis Borges, Dois poemas Ingleses
7 Comments:
Um autor que deslumbra com a grandeza da sua obra. Dos 5 livros que a reúnem em folhas soltas nem 3 devo ter lido no seu conjunto. É bela mas não a consigo levar de seguida. Nem sempre se consegue arranjar tempo e predisposição para abarcar com uma série de conceitos filosóficos que ele deixa nos seus escritos.
Eu gosto deste suborno que ele aqui deixa. Oferece-se... Todo.
beijinhos e boa semana
"Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal"...
todo temos fome de "cumplicidade". até os grandes poetas. na sua grandeza. e solidão...
abraços
"Com que posso prender-te?"
Com a liberdade.
Só com a liberdade se pode prender.
borges é na verdade o mestre...
abrazo
... [não prendas]...
... nunca subornei ninguém
assim tão linearmente bem.
ah! mas o método revendo
a oferta será em crescendo...
beijo & sorrisos.
gi: Quando li o Aleph adorei, há muito tempo.Agora ando às voltas com a poesia e esta assaltou-me, talvez porque corresponda a um anseio, identifico-me com esta oferenda magra, esta lucidez.Suborno? Pois, suborno, mas que suborno!! Também queria assim um suborno destes!
bjo
Herético: certamente, fome...de cumplicidade também, habitam eles a grande solidão mas ninguém está verdadeiramente só quando tem a conciência do que é e do que tem para oferecer...abraços
anonyma: com a liberdade...resta saber o que é a liberdade ou com que espécie de liberdade...
mixtu: é, um mestre, abraços latinos!
entre os teus lábios: não, quem, eu? ou o Borges?
legível: oi... crescendo, claro !não tem fim, há sempre um pormenor que podemos acrescentar.
Bom fim- de- semana,boas férias se for o caso!
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