domingo, setembro 21, 2008

O amante

Marguerite Duras,1914/1996

Tenho O Amante aberto à minha frente..."Voltamos ao apartamento dele. Somos amantes. Não podemos parar de amar." linhas, livros. na fotografia o rosto que afirma ter de repente envelhecido.dela, da personagem ou dela, quando lemos andamos à procura de qualquer coisa, farejamos, passamos à frente, voltamos atrás, escavamos além das linhas, um momento, o momento de uma frase na sua lisa exactidão, clareza, luz, esforço, presença. uma vontade apanhada a eito nas voltas de uma narrativa que corporaliza, ergue e faz tremer. esquecemos como os sentimentos são contraditórios, ambicionamos uma consistência, mas esboroam-se e retornam as convicções, quase lá, na saída do grito ou na imensa alegria, atentamente como se nada pudesse passar despercebido, um cortinado, um ruído de pássaro, um talher, pudessem decidir, transformar de repente o presente já memória, uma atenção de quem está à beira do maior pânico e da maior indiferença.
Ao ler deixo as pequenas cavidades dos meus dedos suados sobre o papel poroso...Pergunto-lhe se é costume estar-se triste como nós estamos. Ele diz que é porque fizemos amor durante o dia. Diz que é terrível depois.
de que modo podemos falar quando falamos só de sentir?


domingo, setembro 14, 2008

Vindimar

Dionisos, deus do vinho, gravura grega


Setembro é um mês especial para se viver o tempo, porque não só marca a passagem do verão para o inverno, do lazer para o trabalho, como é o mês assinalado nos países mediterrânicos como o tempo da vindima. Apanhamos a uva doce em cachos compactos, colocamo-la em cestos, transportamos pro lagar, depositamos, pisamos e depois a natureza produz por si a própria mudança. Os gregos marcavam esta época com grandes festas, e nós, dispersos pelo betão já só temos desta vindima artesanal uma memória nostálgica, há máquinas para tudo e já não são precisos os pés e as mãos, servimos o vinho e há no vinho uma amálgama de espíritos que se libertam de todo este tempo de transformação, fermentação, maturação, como um organismo vivo que vai com o tempo atingindo a sua forma perfeita. Gosto de participar neste ciclo de mudança. Sei que vêm aí tempos difíceis, amanhã começam as aulas e não tenho bons augúrios para este ano, estou cansada de tanta mudança repentina sem a devida fermentação e maturação, cansada de tanta pressão para o sucesso. O sucesso não se faz à pressão, não se mede estatísticamente, obedece a muitas variantes que não são susceptíveis de ser quantificadas. A educação afastou-se da respiração natural e é hoje uma fonte de burocracias e mal entendidos. sorry. devia dizer o contrário porque sou professora, mas não digo, não posso. Espero que o tempo e o bom senso das pessoas impere sobre esta algraviada de economicismos grotescos. Comecei pelo vinho e acabo na educação para dizer que acabou a festa, vamos para outra vindima!

quarta-feira, setembro 03, 2008

identificação

Arthur Fellig

Há qualquer coisa de estranho em mim, possivelmente muito estranho: não me identifico com nada

Não me identifico com certas pessoas, nem com certos grupos, nem com ideologias, nem com ambientes, nem com lugares, nem com trabalhos, nem com pensamentos.

Isto vem a talhe de foice da conversa com uma amiga. Estavamos na praia do Meco de nalga ao léu ( eu cá tinha as nalgas tapadas. Lá está! não me identifico com os nudistas nas praias de nudistas, nem com o nudismo ) então dizia a minha amiga:

- Não sei se vá à festa do Avante! Já não me identifico com aquilo!

pressenti naquela resposta um rumor surdo do que também pensava e não queria admitir, de modo que disparei : Tu também não te identificas com nada! Ela respondeu-me enumerando algumas coisas com as quais se identifica, poucas verdadeiramente significativas, mais miudezas. Fiquei a magicar se seria ou não sinal de vitalidade cósmica identificarmo-nos com grandes sintomas civilizacionais: uma ideologia por exemplo, um grupo. Na verdade sozinhos só assobiamos para o alto, mas também não é esse um sinal de quem pensa com a sua cabeça? nem aqui pareço ter a identificação completa do meu problema: é que nem sempre penso com a minha,outro dia pedi uma cabeça emprestada para solucionar um caso bicudo e identifiquei-me com a solução dada.