terça-feira, novembro 29, 2005

Rodrigo Leão

Tocou na Fnac, com aquele tom discreto e concentrado. Dedos no piano, cabeça baixa,a cantora virava amiúde a cara para o lado dele como que a procurar inspiração, mas não precisava, tinha uma voz insegura mas cristalina e a música saltou de cá para lá, rodopiou; de repente senti-me em Paris de França, de peúgos e sandálias a vender jornais, talvez o som do acordeão recorde Paris, uma cidade antiga de céu baixo e ruelas sombrias, uma cidade de desejos e de adolescentes perdidos. Deliro...porque não?

segunda-feira, novembro 28, 2005

" Há um país perfeito com o mar ao fundo
um lugar reservado aos amantes do fado
com mesas livres onde os pregões se deitam
sobre toalhas de linho riscadas nas pontas

Há um sentido azul bordado a ouro
dentro de caixinhas vazias
com muitas gavetas ocultas
e, nesse país perfeito com o mar ao fundo
há passos de roda
portas a encostar para o lado do mar
uma certeza mansa, um hemisfério completo
para ver-te chegar."

domingo, novembro 27, 2005

You are welcome to Elsinore

" Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar"

Mário Cesariny

quinta-feira, novembro 24, 2005

Devaneio

Apetecia-me um Bacardi com gelo, apetecia-me dar uns passos, afastar as cortinas e pestanejar com as luzes de néon dos prédios em frente a anunciar uma nova marca de refrigerantes . Apetecia-me não saber onde estou, talvez uma cidade desconhecida com um ruído de carros de fundo , num quarto qualquer de um hotel em tons quentes , com pequenos candeeiros soprando uma luz ténue sobre uma cama larga de coberta creme e almofadas altas. Apetecia-me sentir o apelo da noite como não sinto há algum tempo, como já senti, aquele formigueiro sobre o coração, a sequência de imagens fugídias, músicas, olhares, pernas, corpos cadenciados , sorrisos, lábios, mãos que encontram, tocam e fogem.Apetecia deambular com rumo fixo, à bolina entre vozes conhecidas e desconhecidas, tomar um banho de frenesim e aportar ao quarto de hotel, deixar-me cair sobre a cama...tomar o último Bacardi com gelo e ver os primeiros raios de sol a brincar nos sapatos deixados ao acaso sobre a alcatifa.

terça-feira, novembro 22, 2005

Mais uma colega que meteu baixa por tempo indeterminado. Causa? Depressão. Atónita...a colega x deprimida? Sim, já não era capaz, não conseguia levantar-se da cama. Continua a falar. Era o chefe que explicava o facto. Certo. Pormenores? Não sei. Relatório psiquiátrico. Como será um relatório psiquiátrico? A paciente revela sintomas anómalos, chora muito, tem insónias, fobias, recusa-se a estar com pessoas,sintomas inequívocos. Penso. Será assim para alguns, um dia estilhaçam como o vidro do carro atingido por pedras de um atrasado mental que gosta de jogar ao "parte tudo" . Fica estilhaçado mas não cai, não se desmorona, fica inteiriço mas perde o propósito , a unidade do todo, aos bocadinhos cheio de fissuras, ferido.Cruzava-me com ela todos os dias, "Bom dia" "Boa tarde", às vezes falava-se do insucesso, de textos interessantes, a última conversa foi mesmo obtusa, falámos de contas bancárias e juros. O que se passa, passou, passará? Se tivéssemos bebido uma cerveja e comido uns tremoços? Ventania por entre o abre e fecha portas de todos os dias. É pá aguenta-te aí. Segura o fio, não te percas no labirinto.

domingo, novembro 20, 2005

Neste tempo de chuva dá-me para ler,este romance Sputnik meu amor do japonês Haruki Muraki (estes nomes!!) lê-se bem, tem aquela atmosfera clara que só os orientais dão, uma espécie de aceitação do que é, com crueza sem conflitos interiores indissolúveis.
" O que aconteceu é que ao conhecer Miu deixei de pensar e ao seu lado deixava-me transportar para longe-para um lugar cuja existência me era totalmente estranha - e limitava-me a pensar: tudo bem, deixa-te ir com a maré.
Por outras palavras, para seguir Miu tive de me libertar ao máximo da bagagem.Até o próprio acto de pensar se tornou um fardo demasiado pesado."
Interrogo-me sobre estas frases. Esta paixão que temos pelo indivíduo aqui desvanece-se, como se o indivíduo fosse um Sputnik, o que resta de, o resto. Por amor mudamos e moldamo-nos de forma indelével ao que o outro quer e deseja. A questão coloca-se aí. Até onde podemos ir. Quais são os nossos limites. A mensagem é que o amor não é coisa de ego mas do seu desaparecimento, nesse contexto o indivíduo só volta a ser quando de algum modo o amor se torna impossível e quando volta a ser é a ausência que o define.Mas apesar de poder desaparecer o ego com toda a sua bagagem, a verdade é que há qualquer coisa no indivíduo que marca a sua solidão irremediável e isso tem a ver com a experiência e com o corpo. Neste caso, há um corpo que resiste e outro que deseja, são os factos, por mais que se queira, a vontade nada altera desse facto , por mais que sejamos no outro e pelo outro, há uma necessidade física e é essa que marca o início e o fim, essa marca restitui ao amor os seus limites e atira-nos para a experiência individual sem remédio.

sábado, novembro 19, 2005

Manifestação

Ontem éramos muitos, muitos professores,(10mil ou 7 mil consoante os sindicatos e a polícia) o dia reclinava quando nos agrupámos em filas de sete e começámos a nossa marcha para o Ministério da Educação. Senti que era um momento histórico, que o conceito de greve e manifestação está a perder o sentido numa sociedade de competitividade em que já não há espaço para lutar por direitos, pois perde-se produção logo qualidade de vida. A China será,provavelmente, a futura grande economia mundial e na China os trabalhadores não têm direitos ,alegrei-me de ser Europeia, de poder exprimir os valores humanistas que devem prevalecer sobre os valores economicistas. Estávamos a lutar pela dignidade da nossa profissão, estávamos a dizer que é preciso pensar nas pessoas e não nos números. Isto é idealismo, mas ainda bem!

quarta-feira, novembro 16, 2005

É já dia 18 ,o dia marcado , mas os sindicatos negoceiam com o governo e parece-me que estão a chegar a um acordo sobre as horas não lectivas, aulas de substituição e tarefas a cumprir por professores e educadores. Faltam dois dias e as minhas dúvidas permanecem, este efeito da democracia sobre a nossa capacidade de decisão é fatal! temos o sim e o não...ambos apelam ao nosso sentido de dever, aos mesmos valores: responsabilidade, consciência dos direitos e deveres, sentido político (de polis). Por um lado o Governo,em quem votei e que, de um modo geral, está a tentar governar, ou seja está a tomar medidas impopulares e que exigem o sacrifício de todos, por isso, por solidariedade com todos os portugueses e por lealdade para com um governo que mereceu o meu voto, não devo fazer greve. Por outro lado está a ideia de educação que defendem, uma educação de medíocres e para medíocres, uma educação que tenha bons resultados sem olhar a como, uma educação do faz de conta que ensinas, faz de conta que o puto sabe, faz de conta que o principal é garantir a escolaridade mesmo à custa de formar gente ignorante e incapaz,uma educação de números e estatísticas. É óbvio que devo dizer não, que devo fazer greve. Até agora não me decidi.

terça-feira, novembro 15, 2005


Aqui está! Ele já empacotava as coisas para largar o apartamento, tinha perdido tudo, o emprego , aquele lugar de executivo oferecido de bandeja em troca de un favores (alugar o apartamento para os "arranjinhos" do patrão) e a miúda. Quando o patrão lhe pediu novamente a chave do apartamento limitou-se a pôr em cima da mesa a chave do seu cacifo e demitiu-se.Era a noite do novo ano, ela tinha combinado passá-la com o patrão numa festa mas, de repente, tudo passou a ser mesquinho. Nevava, ela deixa o patrão a falar sozinho e corre para o apartamento vazio, senta-se na cama e convida-o para um jogo de cartas. Há certas alturas em que uma pessoa tem que tomar uma atitude!

segunda-feira, novembro 14, 2005


O filme é de 1960, ganhou até o óscar nesse ano...é o que dá pensar que a memória é como o algodão...então, aqui ele acaba de chegar ao apartamento, ela jaz em cima da cama,tomou uma dose excessiva de comprimidos, a surpresa dele é total. Como? O facto é que trabalhavam na mesma empresa, ela ascensorista ele escriturário, a paixão era unilateral, ela não lhe ligava bóia...nessa noite quando chega a casa depois de ter alugado o apartamento, recebe um presente envenenado, a rapariga na sua cama!! inanimada...bom, as peripécias daquela noite continuam no post anterior...esparguete, café forte, jogo de cartas...ela sobrevive...claro!

Chama-se "The apartment",Billy Wilder, 1953.Quando ele ensaia fazer um esparguete e escorrê-lo com a raquete de ténis , ela, aportando por acaso naquele apartamento de solitário, tenta resistir a uma tentativa de suicídio. Ele gosta tanto dela que nem imagina que a sua tentativa de suicídio teve como causa o patrão a quem ele, por falta de dinheiro ,empresta o apartamento para encontros fortuitos. Estes enganos de amor...mas a força da ilusão dele, a sua dedicação e a sua coragem levam a bom porto o sonho, ela esquece o patrão e ele oferece-lhe a vida.

sábado, novembro 12, 2005

No dia em que festejavam os meus anos...havia um vaso de sangria, fresquinha e morena como esta. As rodelas de laranja empatavam na boca do jarro ,era um trabalho que exigia um jeitinho especial retê-las no sítio para deixar escorrer para o copo o líquido. Tchim, tchim, uma homenagem às toalhas brancas manchadas de vinho, aos risos , aos cabelos despenteados, à alegria que umas quantas cabeças zonzas produzem.Um convite para beber uma taça de sangria, minha amiga, faz-me recordar coisas boas!

terça-feira, novembro 08, 2005

"Tou com saudade de ti, meu desejo
Tou com saudade do beijo e do mel
do teu olhar carinhoso
do teu abraço gostoso
de caminhar no teu céu.

É tão difícil ficar sem você
o teu amor é gostoso demais
teu cheiro me dá prazer
quando estou com você
estou nos braços da paz."
Não me perguntem nada, deu-me para cantarolar estes versos, nem sei quem escreveu, um magoado coração de um magoado coração, talvez no meio de uma praçeta fajuta do litoral brasileiro, ou no meio do deserto, seja onde for, veio assim e é bem assim que nos socorremos das palavras e da música ! Senhores ,se não fossem os poetas! A Bethânia deu-lhe vida, cantou-a com os ssss todosssss para vocêsssss ....

domingo, novembro 06, 2005



Ora bem! Viva a criatividade! Pois se você está deste lado, tudo bem, o processo está concluído!

terça-feira, novembro 01, 2005

Eros

" Na qualidade de filho de Poros e Pénia, Eros herdou caracteres de ambas as partes. Em primeiro lugar é pobre, e, longe de delicado e belo, é rude,sujo, anda descalço, sem eira nem beira. Não tem outro leito além do chão, dorme ao ar livre, desagasalhado, junto às portas e nas ruas. Assim imita a indigência de sua mãe, indigência que é sua eterna companheira. Por outro lado, herdando a natureza do pai, vive à procura do belo e do bom; é bravo, audaz, ardente,filósofo, bom caçador; (...) Por natureza não é mortal nem imortal mas, num só dia, tão depressa se encontra pleno de vigor e belo, vivendo na abundância, como tão depressa morre, pois renasce por causa do dom natural que herdou da linha paterna. O que adquire escapase-lhe sem cessar, de maneira que nunca se encontra, nem na pobreza, nem na opulência."
Platão, Simpósio
Eros, o amor, surge assim aos olhos dos antigos como aquele que está a meio caminho, entre a riqueza e a pobreza, entre os deuses e os homens, pois se trata de um demónio, sempre à beira de ser nunca chega a ser e a sua imagem é de movimento constante. Move-se rapidamente numa procura que é a sua própria natureza, este Eros não pode deixar de nos parecer a face do desejo. O amor desejo. Mas se podemos acentuar a parte da carência de eros, como que entusiasmados pela ideia ,sempre ilusória do todo, absoluto, para o qual ele parece mover-se, e sempre frustrado de não o conseguir, não nos devemos esquecer que Platão reforça a mobilidade como força e não ausência dela, como condição possível e única de ultrapassar os limites. O que Eros dá aos mortais, com as suas setas velozes e frágeis parece-se mais com uma certa consciência da alternativa, uma certa liberdade de fugir à ignorância e de querer. Por isso se move sempre para o belo e para o bem. Resta saber se aquele que possui o seu encantamento saberá discernir, conta Platão que só pode...saber.