segunda-feira, junho 30, 2008

contra a amargura

contra a amargura sobrevive-me muitas vezes o azul de um céu, um punhado de alcachofras roxas, uma sequência de lembranças, a lisura confiante de um olhar, uma cidadania simpática que surpreende e amansa as arestas dos nossos medos. sobrevivem-me um punhado de palavras, uma ou outra semente de um conhecimento do qual me liberto para outros o buscarem ou entenderem como pistas para de novo me deslumbrar como uma criança atordoada, as palavras, aquelas dos instantes mágicos, umas quantas frases não retidas no conteúdo mas atentas à emoção criada e concluo sem grande orgulho, pequenamente, que a força das nossas ilusões continua a segurar-nos pela mão com meiguice não nos deixando cair, melhor, não nos permitindo ficar caídos. também há-de valer esta espécie de coisa ora orgânica e resfolegante, ora meticulosa, esta certeza de nada ter começo nem fim, vive, enlaça-nos pela cintura, respira-nos para a nuca. vale? vale.

quarta-feira, junho 25, 2008

o assalto

Cartier-Bresson

o rapaz enrolara o que parecia ser uma camisa à roda da cabeça, era delgado, muito jovem, pensei, assim à primeira vista, que estava a pedir dinheiro, mas depois pelo grito da velhota percebi que era um assalto, o taxista atrás de mim assistiu ao mesmo mas teve mais rapidez de reflexos, fez uma ultrapassagem, galgou o passeio com o táxi e encetou a perseguição. As velhotas assustadas falavam as duas ao mesmo tempo, tinha sido uma pulseira de ouro, bem no meio da estrada, à frente de toda a gente. Ladrões e taxistas nos subúrbios. O rapaz levou a melhor e a pulseira, o taxista voltou passados cinco minutos, perdeu-lhe o rasto. Secretamente, muito secretamente e com alguma vergonha, torci pelo ladrão.

domingo, junho 22, 2008

Casamentos homossexuais

O mundo dos media teve, esta semana, um acontecimento com uma dose de escândalo q.b , a realização de casamentos homossexuais na Califórnia. As fotografias de homens e septuagenárias a beijarem-se fizeram o deleite das primeiras páginas. Mas não embarquemos em fogos de palha. Tratava-se de um intervalo entre uma lei que tinha sido aprovada no final de um mandato mas que podia ser revista ou mesmo suspensa devido à futura alteração dos orgãos de poder. A impressão dada era que só alguns, os mais mediáticos poderiam usufruir desta fugaz e permissiva chance, os outros (uns milhares em lista de espera) teriam de esperar mais um tempo.Ora Bolas! Quando é que finalmente se olha com naturalidade o facto de pessoas do mesmo sexo se amarem, e quererem salvaguardar esse amor com uma posição que lhes confira legitimidade civil e social? Parece que há um medo atroz da coisa se generalizar, de qualquer dia sermos todos homossexuais e de não haver mais criancinhas... Um casal de dois homens ou duas mulheres tem a mesma liberdade de ser que um casal heterossexual, como estes escolheram um parceiro com o qual querem viver e partilhar a vida, os bens, a protecção na saúde. Essas pessoas existem, trabalham, pagam impostos como as outras, contribuem como as outras para o progresso, não é certamente o casamento que fará nascer mais homossexuais porque a lei não altera o que as pessoas são, e há pessoas que são homossexuais, trata-se de ser, não de escolher, podemos escolher casar-nos mas não podemos escolher a orientação sexual, será que isto não está mais que provado? Se é então da natureza das pessoas, porquê castigá-las retirando-lhes direitos e liberdades? Só se pode castigar quem conscientemente agiu mal e prejudicou alguém com essa acção. Que terão feito de errado os homossexuais para serem tratados punitivamente? Não tenho resposta para esta questão, ninguém tem, trata-se apenas de irracionalidade.

quinta-feira, junho 19, 2008

tasco

mas que mariquice ou "europice" da treta, colocarem nomes franceses nos tascos de beira de praia! Do Bernard só o chic, o resto era caracóis e sardinhas!


segunda-feira, junho 16, 2008

les bienveillantes


"Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça: e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham presentes no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.

(...)

Sem os Hoss, os Eichmann, os Vychinski, mas também sem os agulheiros ferroviários, os fabricantes de betão, os contabilistas dos ministérios, um Estaline ou um Hitler não passam de um odre inchado de ódio e de terrores impotentes."

Jonathan Littell, Les bienveillantes


Assim fala no prólogo de "As benevolentes" um oficial nazi, homossexual, artista, amante de literatura e de música clássica, assassino e exterminador, a primeira, sexta e sétima qualidade foram ditadas pelas circunstâncias a que teve de obedecer, as outras são as que de si próprio retira de autêntico. Será que a história o pode absolver? Não, é como assassino que deve ser julgado, como o que foi, não no que poderia ter sido. O homem não pode fugir às circunstâncias, se elas são apenas acaso, ou se acontecem porque há um território que as propícia, é outra discussão. Mas é o que nos acontece que nos faz? ou o modo como reagimos ao que nos acontece? De qualquer modo não há homem nenhum sem circunstância e em todos ela é condicionadora mas não determinante. A história também nos dá testemunho de resistentes, mas para além do julgamento, mais inquietante e perturbadora é a dúvida, mas também inútil porque nunca poderemos saber.

terça-feira, junho 10, 2008

os amores modernos

Até à Eternidade, Fred Zinnemann, EUA, 1953


Chegou o verão e o calor, com eles a azáfama mansa mas persistente do amor ,das relações ou casos, engates ou paixões, a gama romanesca que bem filtrada se reduz a sexo e amor, o amor parece também coisa de "saison" como as alergias e as picadas de melga. No Inverno abranda, há muito trabalho e está frio, na Primavera começa, e no Verão exulta, pois compreende-se, há o tempo de férias sem nada para fazer e quem conhece melhor ocupação que um "affaire"? Um amor é um excelente passatempo de férias para distrair e fazer exercício físico, para além de massajar o ego e não só. Temos portanto um caso de ocupação eficaz e saborosa dos tempos livres, em geral não sai muito cara e proporciona momentos de inegável prazer. Não se admirem no entanto se as empresas privadas de lazer não tenham tanto sucesso como isso ao propor uma gama variada de gigolos e acompanhantes para satisfazer este apetite de amor sazonal, pensaram e nalguns casos resulta, mas o que é paradoxal e risível nesta busca de amor moderna é que cada um não quer ser amado por qualquer coisa que faz ou proporciona ao outro, dinheiro, trabalho braçal, educação , comidinha boa, prendas, não, cada um quer ser amado por si, pela sua (palavra tão na moda) singularidade. Na sua vidinha burguesa e atarefada cada um quer a sua dosezinha de prestígio pessoal, alguém por ele apaixonado. Eu sei que este texto é cínico, ninguém dos visados poderia subscrevê-lo porque continuam a pensar na alma gémea e a acreditar no amor puro, mas na prática ninguém abdicaria da sua confortável vida por ele. O Miguel Esteves Cardoso já escreveu sobre isto e melhor, que o amor dá trabalho e é fo..., que não é só prazer também são os gritos, os compromissos e os obstáculos, mas as tristezas e os vazios que dizemos sentir por falta de amor continuam, a verdade é que à primeira adversidade pomo-nos a milhas , preferimos chorar porque não deu ou pomo-nos rapidamente à procura de um substituto, e fazemos melhor em procurar substitutos do que em chorar porque pelo menos não andamos a enganar-nos com o amor como se ele fosse absoluto e insubstituível quando não é, a questão parece-me apenas tédio, mais nada, e o melhor para o tédio talvez seja rapel, surf, canoagem, ou subir o Everest quem sabe...
(eu cá vou subir o Everest, devagarinho, claro, por causa da perna...)

quarta-feira, junho 04, 2008

nada a fazer

Não há nada a fazer, serei sempre uma outsider, por mais que queira o meu corpo não obedece às regras do politicamente correcto, vergar a espinha e dizer que sim, pensar que não, pensar antes de dizer e dizer o menos possível, neutralizar a expressão, focalizar o olhar, essas coisas que a gente séria e eficiente faz. Já me catalogaram, a criativa que só arranja problemas, e é bem verdade, uma estranha contradição de ser não ser, ou seja sou brutalmente entusiasta, quando me apresentam as coisas é sempre bora lá, e sonho, mas encaganito com a autoridade. tá ali a autoridade? pois é desastre, daí o azar com polícias ,presidentes, directores e as sequelas da representação. Precisava de disciplina, não há nada como a disciplina para adoçar o corpinho mas cresci como uma selvagem, olhem consegui, não sei como, é mesmo um mistério, e agora nada a fazer, só um olhar doce, um olhar doce e fico de quatro, nem precisam de coleira.

domingo, junho 01, 2008

gare do oriente

(fotografia daqui)
Gare do Oriente, 21h. saída da orla do meu mundo atravesso subterraneamente a cidade. na Gare do Oriente a esta hora muita gente ainda espera o autocarro. apesar de Maio, há um vento cortante, tonto, criado a partir daquele labirinto de postes de cimento, arcadas e poços, uma corrente de ar permanente. relativo silêncio, o dia desaba. estaria em casa, se hoje fosse um dia normal, em frente ao computador a preparar aulas, teria ido ao supermercado, mas escolho pacientemente algo para trincar numa espécie de 24h, aqueles espaços abertos pela noite dentro. Poderia esquecer as olheiras da rapariga da caixa, mas o olhar não esqueço, deve ter uns dezoito anos,além daquele olhar que vem lá do fundo de uma noite qualquer, inventada ou descoberta, a sua falta de reacção quando pega na sandwich que lhe estendo, sem tirar os headphones, não fala para mim quando diz 3 euros, fala com alguém que se encontra algures atrás do seu olhar, nesse ponto em que não vemos senão um pensamento absorto. Como as duas fatias de pão com qualquer coisa alanrajado, tomate?, não, salmão fumado.Um homem alto de estranha pronúncia abeira-se, não tem nada para comer, ofereço-lhe metade, aceita, fala em dinheiro, dou-lhe um euro, continuo com fome também, aproxima-se uma velhota simpática com um chapéu e uma rede preta no cabelo, quer beber uma bica precisa exactamente de 55 cêntimos, depois senta-se na mesa do café a beber a bica que lhe paguei, tem graça, julgava-lhe a mentira, afinal, não, aceno à velhota, deseja-me boa sorte. Ninguém parece apressado, está tudo ali como se fosse a sua casa, naquele vão aberto ao vento. Os autocarros vão circulando, encosto-me também a um daqueles postes de cimento enrugado e fico a perder-me de olhar, Lisboa cala-se, o roçagar de sacos plásticos e dos papeis a voarem.