quinta-feira, setembro 28, 2006

caminho xxl

Talvez fosse sempre dentro de mim um concerto a duas vozes. Quero escrever, dêem-me o mote para alinhar as palavras, quero falar de mim porque as conversas são sobre outra e porque converso demais sobre essa que não sou eu, tenho em mim um universo de palavras que nunca mais acaba e são sempre as mesmas palavras. Então já que essas não bastam talvez o silêncio. Um porteiro da noite com a sua tira de couro cruzada no peito, no seu antiquíssimo fato de guardião, ele e só ele deve ter a chave do enigma. O meu vestido de algodão, as minhas calças de ganga, as minhas T.shirts esvoaçam na brisa da noite, talvez seja tarde, não demais, mas tarde e não haja mistério algum, ou talvez a emergência dos factos construa por si um tal labirinto que nos soergue pelos cotovelos como uma muleta e no caminho só o tock tock das muletas no pavimento deserto. Pensar é andar em círculos, escrever coloca marcos na estrada, e, sim, parece-nos que vamos a algum lado e encontramo-nos perante a porta.Simples. Édipo terá descoberto o enigma da esfinge, mas agora somente um porteiro na noite , a vigília e a história, soma de enganos. Porque será que tinha a chave do enigma, Édipo, para consumar os enganos? Porque tinha ele só a chave do enigma e ela só abriu a porta da caixinha de Pandora…clarividência viciosa ou somente a vontade e o orgulho de ser , de querer ser contra toda a fatalidade? O que sabemos e o que pensamos saber. Nenhum prejuízo vem ao mundo, pelo contrário , do sofrimento de Édipo, só ele, dele falamos e esquecemos.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Caminhar

Carrego com o indicador no rato, vou às Bahamas, ao deserto, a Londres, em dois segundos. Na geografia e nos números tudo é relativo, cabe numa folha de papel. 20.000 Km traçam-se com a ponta do indicador, também. Se quiser lá ir são estradas e campos, pontes e mares e pedir muito tempo ao tempo e muito ao corpo. Mas ver,sentir, exige que façamos o processo, nada se sente instantaneamente. É preciso percorrer o caminho. No mapa das emoções, parece que o outro está aí ao lado, na janela que se abre no computador, mas não está, chegar-lhe , aproximar-se, é um jogo de subtilezas, uma dança que dançamos sem saber, guiados pela ânsia, por querer, pelo calor que transborda e se desfaz. Neófitos, todos , a viver por detrás de botões.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Arrábida, entre o verde e as línguas de terra queimada, la strada...e a esquina, aliás as esquinas da vida...

domingo, setembro 17, 2006

domingo

Porque hoje é domingo e está aquela luz fantástica de fim de Verão a lembrar a infância e o amolador de facas que na sua bicicleta aos domingos de manhã, assobiava na gaita de seis canos para nos fazer vir à janela avisar os dorminhocos que se afiavam e consertavam toda a espécie de objectos pontiagudos, apesar do domigo ser o sétimo dia da semana, o dia em que Deus no seu afã criador, se deitou para descansar, porque hoje é domingo dizia, e aos domingos ia-se à Igreja depois da confissão de sábado, expurgar e aliviar os pecados, não posso deixar de respirar fundo e fazer a minha confissão, levada pelo hábito ou pelas palavras sábias da minha mãe: "Se alguma coisa corre mal, tu deves ter alguma culpa disso!" Sim, palavras sábias, no escaninho da minha atormentada consciência vislumbro uma luz, pois de nada me serve sentir "que tenho a culpa disso", com a culpa nada se edifica e nada se compra, facto é que com a culpa descobrimos duas coisas importantes que se degladiam infinitamente: que somos responsáveis por aquilo que nos acontece é a primeira (de nada serve pensar que não somos os únicos responsáveis porque isso não anula a nossa responsabilidade) e a segunda é justamente pensar que isso que nos faz sofrer também nos engrandece e a única grandeza é , de facto a que resulta da humildade de o admitir. A tentação é fugir para a frente e recusar toda esta lamechisse, acusar rapidamente tudo, ou não acusar nada, para fugir à dor, mas ela volta, trabalha-nos. Uma psicóloga minha amiga, na sua classificação das doenças mentais diria que esta forma de pensar aproxima-me dos neuróticos. Isso satisfaz-me, ser alguma coisa precisa já não é mau neste mundo de ambiguidades, "grosso modo" ela estará a dizer que o Cristianismo, religião onde todos somos educados é uma religião neurótica, e tem razão.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Senta-te, senta-te ao meu colo
repara como me tremem os joelhos
como nada afinal tem significado
senão este balbuciante abraço no escuro.

Sabes que choro
Sabes sempre qualquer coisa de mim
agora choro por passarem sem ti os pássaros
por me chover na pele e não notar
por trazer as mãos sujas de passado

Olha para mim por um momento
sente o corpo a espraiar-se no mar
a enrolar-se nas ondas da maré
a levar-te nas asas de uma gaivota

Deixa-me apenas por uma vez
apanhar esse fio de tristeza que te escorre do peito
Deixa-me trazê-lo à boca
Dar-to num rumor lento de folhas e vozes
num murmurar de carícias
Dizer-te o que acende uma só mensagem nas pálpebras
e me leva a nada dizer
a ficar muda
e já não ter medo do silêncio.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Pormenor do fresco de Miguel Ângelo sobre o nascimento do Mundo.
Deus vem do céu, em esforço e fúria, suportado por anjos e querubins para transmitir ao homem, o seu poder, ou parte dele. O Homem não parece muito interessado, diria até entediado com todo aquele aparato divino, se houvesse legendas no quadro de Miguel Ângelo e música de fundo, poderíamos imaginar a música que acompanha Deus e os rosados querubins como a Carmina Burana "Oh Fortuna!!!" , de repente misturada com a musiquinha do Homem: " Chamem a polícia ei ei ei ei, chamem a polícia" e a frase que lhe revolve o forte pensamento: "Anda lá cota, despacha lá isso que tenho mais que fazer..."e estaria tudo dito se de Deus não tivessemos perdido o rasto e só nos restasse para consolação de todos os dias o Homem e seus homenzinhos, agora transformados em engravatados tecnocratas, advogados e dirigentes que fazem leis todos atarefados na sua azáfama enquanto esperam jantar com a secretária. Daí à história penosa da "Ponte de Entre os Rios" e da pena que sinto por ter sido provada a culpa, em mais uma cena circense de tribunal, de seis desgraçados, velhotes e pobres funcionários a quem toda a gente exige indeminização, vão dois mil anos de voltas às cegas. Onde está a culpa provada do Carlos Cruz? Do Isaltino? Do major? Da Beleza e do irmão? Da Fátima? Do Judas? Do Melancia? e de outros tantos lambedores de cadeiras? , só podemos dizer que também têm anjos e querubins agora mais avisados, para lhes cantar a música "Chamem a polícia...ei ei ei, chamem a polícia, chamem a polícia ,que eu não pago." Pagamos nós, nós os que não fazemos parte do quadro.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Como toda a gente diz foi ferido o coração da América. Vai ficar na História a monstruosidade desta acção. Morreu aquela vida que Ferlinguetti, um poeta americano, cantava, nos anos sessenta, quando a América era ainda a terra dos sonhos:

" ... A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a observar os jogadores de bilhar de bolsas
integrado naquele cenário
devorando macarroni
e li algures
o Significado da Existência
mas esqueci
exactamente onde.
Mas sou o Homem
E estarei lá
E talvez ainda faça falar
os lábios da gente adormecida.
E talvez transforme em relva
os meus cadernos de apontamentos.
E talvez ainda escreva o meu
anónimo epitáfio
pedindo aos cavaleiros
que não se detenham."

(excerto do poema Autobiografia, tradução de José Palla e Carmo)

sexta-feira, setembro 08, 2006

Hoje só tenho a anunciar algo do qual não me orgulho. Verdade. Não me orgulho nada de ter o coração aos bocadinhos como o papel quando os putos apanham uma tesoura à mão!

terça-feira, setembro 05, 2006

revolução

Na onda de um cinema que procura reavaliar e ,de um modo mais secreto, reviver, a efervescência e o idealismo puro de uma geração que se autoproclama sucessora de Baudelaire e de Mao Tse Tung, vem este filme reencontrar-nos com "Os filhos da revolução" esse bando de jovens protagonistas do "Maio de 68" onde o conceito de juventude emana como transgressão e inconformismo, apanhados nas contradições da História e com a firme convicção de que nasceram para a fazer. Os franceses souberam como ninguém apropriar-se desta ideia de "Revolução" na sua vertente lírica e poética, é esta revolução, da qual ainda ouvimos o eco distante, que nos causa uma constante nostalgia.

sábado, setembro 02, 2006

De aquí a la eternidad IV

"No he amado las almas, es verdad,
sus pequeñas miserias
sus rencores sus venganzas
sus odios su soberbia
en cambio he amado generosamente
algunos cuerpos
mi amor los ha embellecido
más que el maquillaje
me amor los ha enaltecido
siempre es más fácil amar un seno flácido
un ojo ligeramente estrábico
que el mal carácter
la mezquindad
o el narcisismo
llamado otrosí ego.
No he amado las almas, es verdad,
sus pequeñas miserias
sus rencores sus venganzas
sus odios su soberbia
en cambio
he amado hasta el éxtasis
algunos cuerpos
no necesariamente hermosos."

C.P.Rossi