terça-feira, março 29, 2005

lorca e as duas da manhã

" Perdi-me muitas vezes
para buscar a queimadura que mantém as coisas acordadas
e só encontrei marinheiros deitados nos corrimões
e pequenas criaturas do céu enterradas sob a neve."

Garcia Lorca, Poeta em Nova Iorque, 1929

Agora, noite principiante, neófita noite, evocamos o Lorca, ele tem sempre uma frase
vital para segurar o pensamento, pôr-lhe andaimes, rodeá-lo de coisas certas. Na noite onde se cruzam e descruzam as lembranças,se cruzam e descruzam as emoções, se cruzam e descruzam os desejos.

segunda-feira, março 28, 2005

Ai os Mitos!



Velázquez,Hermes e Argus, 1659
Argus, a figura dos cem olhos, descansa e é tomado pelo sono, pois Hermes , o irrequieto Hermes nunca adormece e parece apostado em roubar a fama de perspicácia e audácia a Argus.Roubar-lhe a sacola? A ele? Pois não devem ser os mitos incorruptíveis e protectores? Quando sózinhos sim, mas há que contar que quando deuses e semideuses se encontram , há um que tem de ficar a perder. Eles não jogam ao acaso, querem sempre qualquer coisa em troca.Doravante, ficará Argus mais acutilante , evitará dormir e perseguirá Hermes, se acaso, quando acordar perceber que só pode ter sido ele, com quem descansou na berma do caminho empoeirado, a roubar-lhe a sacola. No próximo encontro, Velazquez ausentou-se para namoriscar, e não retratou a cena,mas conto-vos eu, que Argus roubou a lira que Hermes inventou e deu-a aos homens. E ainda bem!Venham as liras! Moral da história? Nem sempre o que começa mal acaba mal...ou como a ocasião faz o ladrão, ou ainda os deuses terão os pés de barro? Desculpam-se estes aqui pois são filhos de humanos, daí o barro.

sábado, março 26, 2005

Casamento dos pequenos burgueses

Atenção! Isto aqui é uma canção...pra ouvir, esta é só uma parte:
"Ele tem um velho projecto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo tecto
Até ao fim dos dias
Até ao fim dos dias
Ele às vezes cede um afecto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo tecto
Até um breve futuro
Até um breve futuro"
Chico Buarque
Ai raios partam a burguesia, e como ela é desalmada, mesquinha e falsa pobre. Mas assumamos, quem não é burguês levante o dedo! Os meus dedos estão todos aqui, à procura das teclas!

quinta-feira, março 24, 2005

Febre

A cabeça balança.Dói, explode nas têmporas.
Se estou febril? buscar o termómetro. Não não tenho febre, o termómetro é como o...não engana.
Sinto-me febril, todavia. Sentir-me-ei febril, se sentir é sentir , só a mim diz respeito e ponto final.Terá tudo isto a ver com a Paixão de Cristo , o crucificado? Ou da febre das alergias, ou da febre do momento, ou mesmo da ousada expressão de uma efervescente angústia. Que sei eu?Só sei o que sinto. Não, o termómetro sabe menos, todos sabemos que do plástico nada se espera, e trata-se de um problema visceral, diria mesmo latejante, ou seja da ordem da consaguinidade. Posto isto, nada de aspirinas, deixemo-nos enredar nas alucinações quentes da febre e desviemos a atenção da palavra ( recuso-a terminantemente) gripe. Encontraremos uma habilidade para contornar este pesadelo, que pena não fazer renda, quem sabe, por estes dias aprender ...até passar a febre.

terça-feira, março 22, 2005

Preferências

O mar revolto ao calmo
O Rossio ao Saldanha
Laranjas a bananas
Dias de Sol a dias de frio
O rio à planície
O vento à calmaria
A noite e o dia
Prefiro falar a calar
sorrir a gritar
Prefiro o íntimo ao público
a América latina à do Norte
a sorte à premeditação
Prefiro o sim ao Não
a piedade à coragem
a raíz à viagem
Prefiro o amor ao sucesso
a face ao avesso
Prefiro a Arte à política
a história à aritmética
prefiro Aristóteles a Sartre
Aristóteles a Platão
Velasquez a Picasso
prefiro as mãos aos olhos
o ritmo à quietude
prefiro os plátanos,
prefiro tocar a olhar
e de todas as preferências uma só me espanta
pois é a única que prefiro calar a falar

segunda-feira, março 21, 2005

Volta para mim os teus olhos

Volta para mim os teus olhos
Faz de conta que através de mim podes decifrar o mundo
que as minhas veias molham as ruas empoeiradas e sujas
que a minha pele é a viagem das coisas que para a perfeição se movem


Volta para mim esses teus olhos sem receio
vira para mim essa desilusão
que o mundo não alterou nem um milímetro
É o mesmo céu que às vezes os amantes olham e partem
a mesma terra o mesmo mar meridional
Volta para mim os teus olhos
o universo roda e rodará mas quando olhas para mim
é o tempo todo o tempo que se ergue e o que ficou atrás
só por nós fica empobrecido e já nada faz

domingo, março 20, 2005

Finalmente chuva!


Ocorre dizer que sabe bem, não é uma tromba d'água, é só uma modorra fininha, mas apetece abençoá-la, abraçá-la, sair pra rua e lembrar-se de ironizar com o velhinho poema de Augusto Gil, se não me falha a memória, "Bate leve, levemente como quem chama por mim.Será chuva? Será gente?Gente não é certamente e..." exclamo: É Chuva,é a chuva que bate assim!

sábado, março 19, 2005

yourcenar



Yourcenar

" Amar de olhos fechados, é amar como um cego.Amar de olhos abertos, é talvez amar como um louco; é aceitar perdidamente."
Fogos, 1935
Yourcenar escreveu esta frase com 32 anos, fruto de uma 'crise passional' segundo as suas palavras. Hoje, nesta manhã de sábado enevoada apeteceu-me invocá-la.Tenho para mim que estes tratos do amor se dizem melhor de forma alegórica, por estórias, que darmos ao amor o protagonismo acentua o seu lado disperso e abstracto , pois que o amor é tudo. Logo podemos sempre dizer isto e o seu contrário que continua a ser verdadeiro, depende somente do momento, da exigência vivida no tempo e no espaço, por isso aqui e agora e só aqui e agora esta frase tem a força de um imperativo. Compreender isso não retira uma vírgula à universalidade da ideia, (a autora reafirma-o ao contextualizar a frase no percurso da sua vida) ,à capacidade de se adaptar como uma luva incandescente a todos e em alguns momentos expressar de forma irrecusável o que perseguimos como essencial. Na sua ilha dos "Montes Desertos" ou num bairro qualquer na periferia de uma cidade ,setenta anos depois, falamos do mesmo como um diálogo infindável, uma procura constante que é a marca da nossa muito frágil humanidade.

quinta-feira, março 17, 2005

Fitas

"A bout de souffle" Jean- Luc Godard ,1960. Ela não sabe o que lhe há-de dizer, ele diz que tem o carro lá em baixo, à espera. "Vamos fugir" Ela , sim...mas tem ainda uma entrevista a fazer ,acha-o apressado. O apartamento é reduzido, ele não tem nada a perder, ela pensa que tem alguma coisa. Ela olha no espelho, ele para ela.

terça-feira, março 15, 2005

Os candidatos

Abriu a caça aos patos, digo, o concurso de professores! Complicado preencher o boletim electrónico, um erro no tempo de serviço e pronto, lá se vai tudo por água abaixo, impossível corrigir! E agora? Quem sabe? Quem pode dar uma ajudinha? Escolas e Ministério dão informações diversas, o pobre candidato é um pobre candidato ou seja, fica míope a ler a letrinha miudinha das vagas, a letrinha miudinha das instruções, e depois lá vai ele, com as dúvidas de um lado para o outro, já com o fantasma do "erro de candidatura" a bailar-lhe nos olhos por detrás dos óculos que, entretanto, teve de comprar. Oh desgraça! Oh miséria! Quando é que este país trata bem os seus licenciados? Quando é que trata com respeito os que perderam anos a estudar, a querer saber, a querer contribuir com o seu saber para algo de útil? Os antropólogos, os filósofos, os historiadores, os de línguas, os de literatura, os de geografia? Admiram-se porque há insucesso escolar!!!!! Caramba , eu admiro-me de haver tanto sucesso no meio desta pelintrice cultural!

Cigarros

"Fumar mata" diz o maço de SG Filtro aqui, 'near me' ,em cima da secretária que está em cima da cerâmica que está em cima da placa que separa este primeiro andar do andar debaixo. Fumo um cigarro. Cof, cof, aí estamos nós a entrar na roda do fumo, na espiral do vício, na lenta ,inconsciente mas irrevogável caminhada para o fim. Cof,cof.
Bacall pede lume ao Bogart e diz, depois de acender o cigarro, que se encontra no andar debaixo e, se ele precisar de alguma coisinha, basta assobiar, ele não precisou de o fazer, naquele ínfimo espaço de dar lume, ela tinha olhado para ele, o fumo fez o resto.
Os cigarros, aprisionados no maço, continuam a olhar para mim...só os cigarros...já não é mau... a Bacall não está no andar debaixo, as letras do maço são razões de Estado, permitam-me evocar razões pessoais, nenhuma suficientemente clara e distinta, todas muito escorregadias, mas evoco a meu favor a mitologia recente: Dean, Bogart, Sartre, Mellville, Brel, Maurois ,Camus, Highsmith, Pessoa...bom ,não duvido que o cigarro pendurado na boca deles tenha sido cúmplice das mais perturbantes ideias, das formas mais arriscadas ,sem as quais, permitam-me, isto aqui era mesmo só o andar de cima...

domingo, março 13, 2005

Para ti.

Que a brisa nos meça de alto a baixo, nos tire as impressões digitais e nos soerga pelos sovacos até ao céu!
Naquela noite onde morri de transpiração e de saudade tu estavas morrendo silenciosamente.
Ao teu trabalho contra o bicho da madeira, às tuas pequenas iras, ao teu ar pequeno burguês, ao teu conhecimento dos peixes, à tua presença constante e fiel, ao teu gosto silencioso pelo telejornal, ao minúsculo orifício da tua vida,ao buraco que abriste no meu coração. Ergo a minha taça!

sábado, março 12, 2005

Poema

Gostaria de ter sido eu a escrever isto, mas não , 'malleureusement', foi o Cesariny:
" Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a sua crosta
como o navio no fundo do mar"
in: "Antologia da poesia surrealista portuguesa" Assírio e Alvim

Corpo

Um corpo só
para iluminar a noite
partir metáforas
patrulhar a noite com faróis de nevoeiro
Oh latitude esquecida!
Um corpo para espantar ou amassar flores
para começar o verso
Um corpo para deambular por escarpas
desenhar a preto as costas alquebradas dos rochedos
onde o destino roça
horizonte por descobrir
Um corpo para iniciar o mundo
e deixar por ele as palavras ao vento

sexta-feira, março 11, 2005

Apaguei a distância

Apaguei a distância entre mim e o mundo
fiquei com este espaço vazio
de uma curta inspiração
mordi os olhos para não ver mais
e mesmo assim nada mais faço senão penetrar em ti
mesmo assim não consigo respirar quando partes sem olhar para trás
e levas dentro de ti a teia destes meus passos em volta.

Monotonia

45921 é o meu número da sorte. 45 92 1 . Conto os carros até 45. Mando parar. Alto! Cumprimento o condutor. Se possível dou-lhe até um beijo. Desejo-lhe um bom dia. Depois à noite são 92 os anúncios entre a novela das sete, o Telejornal e a novela das nove. 92 sem tirar nem pôr. É verdade. Quando chego aos 92 desligo o televisor e vou para a cama.
Quanto ao 1 sou eu. Eu sou um. Orgulho-me de ser um. Não um qualquer mas UM só. EU. Mais ninguém é como eu. Estou tão certo disso como estou certo que tudo me corre bem.

quarta-feira, março 09, 2005

brecht

O homem cego e a mulher ladra

" Mendigo: Este homem tem uma mulher que o rouba. À noite debruça-se sobre ele para lhe sacar o dinheiro.Ele às vezes acorda e vê-a por cima dele, gorda, desapertada, mamas penduradas e olhos assustados.E então ele julga que ela o ama muito ao ponto de não aguentar e de ter de o ver à noite. Por isso lhe desculpa as pequenas falcatruas que vai descobrindo."
Bertolt Brecht "O mendigo ou o cão morto" 1919
Fico cá a pensar qual é mais digno de desprezo? E já que este sentimento não me é natural, visto que do homem sinto piedade e da mulher raiva, continuo perguntando sobre qual recai a maior condenação? No homem ou na mulher?

Feminino

Natureza e cultura, a segunda reflecte melhor ou pior a primeira. A natureza alisou o corpo feminino, deu-lhe membros flexíveis, voz mais doce, formas arredondadas, sexo interior. Estas características conformam-nos melhor à intimidade, à protecção, à partilha.Para além da fixação obssessiva que a sociedade actual tem na diferença, saliento a essência e de como estar perto dela e compreendê-la não é conformismo mas enriquecimento.

terça-feira, março 08, 2005

Ilusão

Eu nada sei do calor do teu corpo
do teu contínuo riso
ou da fibra muscular dos teus olhos
nada sei da tua alma
sei da mulher que morre devagar
cortando o pulso das horas
sei do beijo que me deste
do adeus
mais nada vi ou senti depois
minto
senti tudo semelhante
a cadeira , o barco a folhagem
o filial ,o inimigo
o semelhante dá-se ainda e só
no lugar onde me deixas

domingo, março 06, 2005

Assinando

Comecei mesmo agora, há pouquinho. Ainda não sei nada disto e ando à procura de um modo de instalar fotos ou imagens. Ainda não consegui...
Rimbaud porque é belo como uma noite de trovoada e Cristina Peri Rossi porque corre no registo ou na temperatura do sangue, morno, e porque me faz sentir que às vezes comungamos mesmo com alguém, uma celebração com café e genebra. Também ao futuro deste blog, e aos futuros comungantes!

Correspondências

" Esta noche, Ana Maria, invítame a un café en tu casa.
Tu beberás ginebra, por supuesto,
porque tienes que cuidarte la salud para algo,
no recuerdas bien para qué, Ana Maria,
pero seguramente algo importante
que debás hacer
o era quizás para perdurar más entre los vivos?
Yo beberé café por hábito
dado que no debo cuidarme para nada
Y bebiendo café y ginebra,
Ana Maria, escribiremos en las solapas blancas de los libros
el verso inacabado y seguramente perfecto
que debería transportarnos a la eternidad
y no alcanza sin embargo más que a proporcionar
un modesto orgasmo a una señora resentida."
Cristina Peri Rossi

sábado, março 05, 2005

" Ó meu castelo, minha Saxe, meu bosque de salgueiros. As tardes, as manhãs,os dias..."Rimbaud

" Ah! Regressar à vida! Contemplar os nossos aleijões. E esse beijo, esse veneno mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo.Meu Deus, piedade, esconde-me, eu não aguento! - Encubro-me e descubro-me." Rimbaud