terça-feira, maio 24, 2005

Pronto

Digam o que disserem, acredito que é possível a grande alegria, o ar sem sombra, o riso, a leveza desassombrada de um olhar. Acredito que os mitos das paixões demolidoras alimentam a literatura mas nós queremos mesmo é alguém que caminhe ao nosso lado, que seja testemunha das nossas imperfeições e da nossa vida, que não nos julgue, não nos peça demasiado, que esteja presente mesmo quando ausente, que possa dar-nos confiança com um gesto nas alturas em que roçamos o desespero. Acredito nisto e pronto.

segunda-feira, maio 23, 2005

As aparências iludem


"Some like it Hot" Billy Wilder, 1959
" São dois pra lá, dois pra cá...cabeça direita, outra vez...dois pra lá dois pra cá,e meia volta...! " O actor Jack e o realizador Billy, ensaiam os passos de dança que acabam com os problemas monetários do primeiro. Há um milionário que se apaixona por Jack/Jackie e,depois de uma sucessão infinita de Tangos propõe: "Casa comigo" ao que ela/ele diz, " Sou um homem" resposta do milionário " "Ninguém é perfeito".
Esta é a fita em que a Marilyn precisou de 50 takes para articular "I´ts me Sugar", isto antes de se meter na cama com o Jack que era Jackie e de passar a noite em risos e Borbon, ele só dava risadinhas histéricas porque , digam o que disserem, um Homem não é de ferro. Aqui ninguém é de ferro é tudo celofane! Fitas !

quinta-feira, maio 19, 2005

Sonho

Ainda às voltas com o sonho. Há uma experiência que me marcou, tinha aí uns 14 anos e o 25 de Abril tinha acabado de acontecer.Sempre gostei de escrever e o meu sonho era escrevinhar pelo futuro fora em máquinas de ferro, a minha lua era o tic tic das teclas a bater vigorosas contra a maciez do papel imprimindo aquelas pequenas letras de imprensa pretas que o gancho da máquina por velhice ia desbotando nas pontas.Via-me noite dentro amachucando folhas A4 de papel branco meias escritas, concentrada nas imagens e nas histórias que as palavras uma a uma iam desvendando, formando, transformando ,prosseguindo.Nessa altura a minha mãe foi comigo a uma rua íngreme para a Mouraria (sei agora porque lá voltei muitas vezes, na altura era a rua onde o meu ofício ia finalmente ganhar um estatuto de seriedade) e entrou comigo, tímida, numa loja escura onde se vendiam máquinas de escrever em segunda mão. Saímos de lá com uma caixa de plástico duro, azul escura, que cobria uma Olivetti com alguns anos de uso mas em muito bom estado. O peso da caixa na minha mão era o sinal indelével de um sonho que se concretizava, de uma responsabilidade que para mim crescia e me mostrava que algo de novo e ansiado estava prestes a iniciar-se.
Na escola, tinha uma professora de Português alta, que vestia habitualmente de negro, amante de literatura e cuja perspicácia sempre me fascinava, não me lembro bem do seu nome, sei que tinha umas olheiras profundas e que usava para disfarçar um pó de arroz muito claro que lhe dava ao rosto um ar de vedeta do cinema mudo, meio frágil meio 'fantásmico'. Um dia, mandou para casa uma redacção de tema livre, eu exultei, como eu gostava de escrever e como me entusiasmava mostrar-lhe como escrevia, saber a opinião dela, porque tinha-a como justa e como sensível à boa escrita. Fui para casa, já tinha alguns textos acabados, um deles, particularmente era-me muito precioso, não só pelo estilo como pelo conteúdo que espelhava bem as minha preocupações e o tema sobre o qual não sentia qualquer dificuldade em espraiar sem limites a imaginação. O texto chamava-se "O Sonho" e era sobre isso mesmo, sobre a necessidade de sonhar, sobre o gosto de sonhar. No dia seguinte, a professora pediu que entregassemos os trabalhos e,nervosíssima, lá entreguei o meu. Quando, passados uns dias foi feita a avaliação e respectivo comentário, percebi que estava tudo errado, algo se estava a passar que me era estranho. A professora começou por comentar os melhores trabalhos , todos eles falavam sobre a Revolução que acabara de se realizar, o 25 de Abril, as tropas, a liberdade. O meu texto ficou perdido lá pelo meio, quando chegou a minha vez, a professora olhou para mim com um ar desinteressado e exclamou " Como é que pode escrever sobre este tema quando se estão a passar coisas tão importantes!"
Percebi que aquela redacção era o meu sonho desfeito, quando voltei a olhar para ela, pareceu-me tudo aberrante e sem sentido, deitei-a fora, não amaldiçoei o 25 de Abril. Só fiquei triste.

terça-feira, maio 17, 2005

Dormir



Louise Brooks, "Loulou",A Boceta de Pandora" Pabst,1929,
Fechar os olhos, dormir, dormir e, se possível, sonhar.

quarta-feira, maio 11, 2005

Morte em Veneza

Chama-se Tadzio, é o adolescente por quem Aschenbach, o velho compositor em crise de inspiração, se apaixona. Tudo se passa no Verão de Veneza, um Verão no Lido, enevoado e melancólico.Com ele vem a luz crua da inspiração e o excesso que cega. Poderemos fantasiar sobre este encontro, quem é inocente, quem é culpado, quem se pode compadecer de um velho insano tomado da mais ardente paixão?Thomas Mann não tem contemplações perante o que escapa ao bom senso. Que se entregue o artista à loucura e que se preserve no Olimpo a eterna inspiração. O vento Siroco que espalha a peste, é, tão somente ,a metáfora viva do velho castigo das Erínias , o selo do destino trágico para os que ousam tocar o intocável, sorver a luz a partir das trevas ou somente escapar à morte com o único poder que não foi circunscrito pelas leis. O poder de desejar.

terça-feira, maio 10, 2005

Amarcord


"Amarcord" Federico Fellini, 1973

Amarcord em dialecto romano, recordar, mas também Amarcord ,palavra cifrada; Amar e Recordar, Amar a Recordar ou de como o tempo torna ternurentos acontecimentos que em si nada têm de louvável.
Preciosismos à parte, este é um filme de recordações, passa-se em Rimini, pequena aldeia de Itália, onde Fellini nasceu. Os anos são os do fascismo, entre o ensino medieval de palmatoadas, e os interrogatórios humilhantes que os fascistas faziam a pacatos cidadãos que largavam num momento de bebedeira uma laracha contra Mussolini, os putos descobriam a sexualidade espreitando pelo buraco da fechadura. O alvo? A merceeira, cujos seios, quais balões de hélio dignos de volta ao mundo, sem escala, cujos seios, dizia eu e, não me esqueci, os levavam em bando para o único carro da aldeia, esconderijo perfeito para aqueles devaneios de mãos nos bolsos que causam a cegueira precoce mas aliviam a alma. Num momento mais distraído ou embasbacado,um deles deixa-se apanhar , pode-se ver o sequestro na imagem acima...A mulher era como aquelas amas do Gil Vicente...o marido tinha-se ido há tempo demais e a carne é fraca...o feitiço e o feitiçeiro juntaram-se num só, e o que era feito para voar tornou-se instrumento perfeito para asfixiar.Ainda a pedofilia era uma brincadeira de gato e rato...

quinta-feira, maio 05, 2005

Ladrão de bicicletas


" Ladri di biciclette" Vittorio de Sica, 1948

Ficou assim a Itália do Pós-guerra.Miséria e Esperança. Ele é muito pobre, tem uma bicicleta, com ela cola cartazes nas paredes esburacadas das casas, com ela sustenta a, custo ,a família. Um dia roubam-lhe a bicicleta, desesperado, sem emprego,percorre as ruas arrastando os pés, a honestidade deixa-se tentar pela única sáída possível, roubar para sobreviver. O filho percebe o estado do pai, organiza os amigos , procura o ladrão pelas ruas sombrias de Roma, em cada esquina, em cada vão, viela, escada, pátio.O fim não digo, vejam o filme. O presente e o futuro.

terça-feira, maio 03, 2005

Preciso

Preciso de uma nova inspiração, suave
uma solução líquida de audácia e força
uma resolução ou uma fatia de lua
que seja minha nem que seja a fatia mais pequenina

Preciso de analisar o estado das plaquetas do sangue
não me admirar se estiverem demasiado baixas
isso poderá explicar a dimensão da minha raiva
e deixar-me-á tranquila saber que afinal é só biologia
a causa de ter o sangue a ferver

Preciso de tomar um antídoto para me imunizar
ou
(nesta altura estou indecisa)
um combustor rápido para largar labareda
aí no lugar onde há saliva e bom senso

Preciso de consultar o dentista a saber:
"Porque será que os meus dentes não são visíveis na superfície da pele?"
Reconsiderar sobre a perspicácia que me dão os cigarros que fumo
comparativamente aos que deixo de fumar por falta
de vontade para levar até ao fim a sequela "Fumar mata"

Preciso de ultrapassar na curva os bebedores de absinto
com a lucidez vivaz dos bebedores de nada
Preciso de voltar a semear um campo de trigo
ver a espiga crescer hirta direita ao céu
Não preciso de me lembrar de ti
também não quero esquecer-te
porque sei que virás ter comigo, por vezes,
num gesto, num cheiro, numa curva qualquer
de marcha atrás