quarta-feira, março 29, 2006


Rembrandt, 1606/1669.

Mulher banhando-se.

Seria possivelmente a sua amante, se neste conceito cabe a ideia de que teria amado a mulher que viveu com ele 15 anos. Só pode ter amado quem retrata assim alguém. Cuidado e corpo, no modo como a vejo. Vai banhar-se na água transparente de um riacho ou rio ou lago, as pernas friorentas de quem anda sempre tapado, o ar tranquilo e as mãos delicadas levantam a roupa leve. Em que pensará?
Transporta nela a alma do pintor que lhe deu vida, e que a contempla, daí talvez o seu pudor.

domingo, março 26, 2006

estribilho

Não podes saber, não sei, ninguém sabe.
A agonia ferve dentro de um número infinito de ais
e volta em estribilho
como um soneto quebrado na cintura
sem a última estrofe.

Cedendo ao medo cederei à morte?

segunda-feira, março 20, 2006

Seguramente

Acho que sou de um velho tempo, um tempo em que Jorge de Sena escrevia:

"É noite, eu sei. Mas como é tanta a noite
que nada resta de humano entre os mortais?
Como vivemos e porquê, se as sombras
nem sequer se projectam, devoradas
pelo restar de coisas insensíveis...
Porquê e para quê, se nada somos,
se nada mais sonhamos de completo
amor que a tudo mova e nos refaça?" (1962)

É certo que esse cronológicamente era um tempo que não vivi, o tempo em que a liberdade gritava como sedenta, amarfanhada, mas com um fulgor inaudito, um homem era livre porque se sabia livre e não se lamentava, não pedia desculpa, lutava e desejava um outro mundo, a sua mera presença, a de homem livre, enchia páginas e páginas escondidas, de esperança, de raiva, de resistência inconformada. Não vivi esse tempo mas está dentro de mim esse mesmo ensejo, essa luz. No tempo de agora, vigilante e hipócrita, a liberdade é uma extravagância, é feia, inestética, incomodativa. Um homem quer-se de sucesso, produtivo, funcionário realmente saudável, vigilante na sua aparência, grave e sério. Os poetas perdem-se em intrincadas formas, como se nada mais tivessem para dizer, como se dos gritos houvesse a consciência de que são manifestação de histeria. Os poetas refulgem como couraçados do anonimato, das não vendas, da inexistência, conformados ao estatuto de coisita, para uso supérfluo.
Decididamente não vejo à minha volta assomos de revolta, razoável é a juventude que confunde o ego com a reinvindicação e a falta de educação com a dignidade.
Sei perfeitmente bem que nada disto é politicamente correcto, dou-me até ao desplante de confessar serem as minhas atitudes verdadeiramente mesquinhas pois não deixo de fumar quando o imperativo é fazê-lo, não o farei quando todos o fazem; manifestação de estupidez? Claro! Completa! "Querem-me tributável? " dizia o Pessoa, pois não serei.
Sábado fui ao Teatro, um grupo novo, um tédio antigo, putos aos saltos a macaquearem programas de TV , "Ninguém é mais má que tu" era a preciosidade da peça. Muito alegre e descontraída que "a gente bai ber arte" para descontrair. Estava tão descontraída que se não fosse o respeito para com os meus amigos tinha-me pirado, ia chapinhar para as poças de água. Os teatros estão a fechar. Os que estão abertos fazem macacadas e em Lisboa a marginal é um corropio de bares abertos até ser dia.
Não não tomo drogas, antes tomasse, uma dose de cocaína que me pusesse também aos saltos!A dizer coisas inteligentes , de que vos queria dar um exemplo mas não me lembro de nada. Sorry!
Isto passa, com as orquídeas (a propósito a minha voltou a florir!Lindo!), o vento na cara e as disposições infinitesimais do clima.

sábado, março 18, 2006


Barceló, (Palma de Maiorca, 1957)
alguém.
Humano.
No centro do caos que do seu corpo emana.O corpo suja a paisagem em volta com seus fluidos e derrama-se frente a uma folha em branco.

Que hei-de escrever?
Vou escrever como o sírio respira.
Em combustão silenciosa.
As unhas no lápis.

A solidão total.
Tudo começa agora.
Aqui no corpo.

quarta-feira, março 15, 2006

Falhas de percepção

Quase sempre esperamos um sinal quando a angústia ladra como um cão raivoso com o seu realismo de cordel, de facto, oh poesia, somos a folha amachucada que rola pela estrada em declive, acicatada pelo vento. Nada mais. Ninguém. Mas quase sempre esperamos um sinal, como o funâmbulo, equilibrado a 100m de altura, no fio que lhe corta os pés, imagina estar a andar numa alameda recortada de laranjeiras. Quem sabe se nessa falha de percepção está o segredo da sua coragem.

segunda-feira, março 13, 2006


"Quilha é o lar de Canopus (Alpha Carinae), a segunda estrela mais brilhante do céu. O seu nome pensa-se que vem do piloto da frota de navios do Rei Menelaus. Este era o Rei de Esparta que levou os seus habitantes a lutarem por Helena de Tróia; o prémio era Helena em pessoa, que se tornou a sua rainha. De Canopus, o piloto, diz-se que morreu no Egipto depois da queda de Tróia. Canopus - a estrela - era conhecida na Antiguidade como a Estrela de Osíris e adorada em muitas culturas antigas. Esta era a estrela que Posidonius usou em Alexandria, por volta de 260 AC, pois tornou-se a primeira pessoa a calcular um grau da superfície da Terra. Enquanto que é a estrela mais brilhante do Hemisfério Sul, Canopus não é visível para as pessoas a viver a norte da latitude 30. Sendo assim, a Europa a norte de Lisboa não pode ver a estrela, e na América do Norte a estrela é visível apenas aos que vivem a Sul de uma linha desenhada entre São Francisco e Washington D.C., dependendo da topografia local, é claro. Para os habitantes do Hemisfério Sul, Canopus anuncia o começo do Verão, pois culmina a 27 de Dezembro. Canopus é uma supergigante com cerca de 35 vezes o diâmetro do Sol. Anteriormente ao satélite Hiparco, a distância a Canopus era difícil de calcular, com estimativas entre 160 até 1200 anos-luz. O satélite calculou a distância a 313 anos-luz (96 parsecs). A estrela tem uma luminosidade de mais de 12000."

Uma estrela no céu a 313 anos luz e que nas noites claras vemos , nós os do Sul, brilhando. O seu lar é como a quilha do navio, aí onde ele flutua equilibrado, curioso como damos estes nomes familiares e próximos a coisas tão distantes, Canopus morreu em Tróia, despojo de uma batalha e a sua estrela vigora, aí na distância verdadeiramente incomensurável, aqui tão perto dos nossos olhos!

quarta-feira, março 08, 2006

Agora, António Botto, "Cantigas"...

" Ando queimado por dentro
De sentir continuamente
Uma coisa que me rala;
Nem no meu olhar a digo
Que estes segredos da gente
Não devem nunca ter fala.

Talvez não saibas que o amor,
apesar das suas leis,
Desnorteia os corações;
-Complicadíssima teia
Onde se perde o bom senso
E as mais sagradas razões."

Ouvi as "Canções de Cabaret" interpretadas há alguns anos numa daquelas representações para amigos. Ao passar por um blog recordei uma delas, voltei ao livro, lá estavam com as marcas, e o ritmo musical que me ficou na memória. Sobretudo uma frase que não esqueço: "Mas não me fites assim!...Diria que és o meu sonho e a minha realidade" O poema é "Ironia", trágico mas jocozo, o Botto era especialista nesta arte de remendar as lágrimas com gargalhadas, a comédia negra de uma certa Lisboa boémia envolta em fumo, crimes passionais e álcool.
Um poeta consumido no vício, mas que bem que se consumiu para nosso deleite, para ele não sei, difícil senão perigoso, viver desse modo num estado repressivo e intolerante e numa moral estúpida feita de medo e medo. Só eles sabem! O Estado morreu ignorante!

domingo, março 05, 2006

O Saxe faz hoje um 1 ano. A todos os que o encorajaram a crescer, a todos os que por aqui passaram, um agradecimento. Espero que continuem a honrá-lo com a vossa presença! A duas pessoas agradeço especialmente, à primeira porque me abriu a porta deste universo e à segunda porque me fez gostar dele.

sábado, março 04, 2006

Compreender


Sabemos o que devemos fazer para ser Eticamente correctos, mas a verdade é que precisamos da Ética e da Moral, isto é, precisamos de correcção contínua. Fazermos o que é conforme à nossa natureza mais imediata e passional é muitas vezes colidir com o espaço do outro e anulá-lo ou utilizá-lo como meio para a concretização dos nossos desejos. Ora o outro, como nós, anseia por ser respeitado e amado, e temos de saber fazê-lo; para além de intencionalmente o querermos, nem sempre sabemos na prática como concretizar e daí ser importante aprender com os outros, compreendendo o seu comportamento. Estas são as verdades que, nesta manhã de sábado repito a mim própria, como a tentar moderar o sentimento ou mesmo tentando racionalizá-lo. Consigo fazê-lo, o sacrifício foi sempre, para mim, algo normal e necessário, aprendi a lidar com a frustração e a dar-lhe um sentido positivo.Todavia não posso deixar de me sentir triste, triste, vazia, tacteando no escuro. Cedo, cedo, havemos de deixar estes sentimentos negativos, encontrar um alento, uma pequena flor, um sorriso desmesurado ou um calor súbito nesta manhã de chuva. Porque será que não ficamos felizes só por compreender?Talvez porque no fundo bem fundo, nessa região inóspita e selvagem nós não queiramos compreender.

quarta-feira, março 01, 2006



Euskadi. O País Basco. Fevereiro de Carnaval.Ribeira de Bilbao. O pombo seria feliz se pudesse falar. Águas negras correm lá no fundo, mas ele está só a descansar de voos picados a dois graus com chuva.

Dentro dos cafés está-se bem, come-se um óptimo polvo assado com muito colorau. Os mascarados a preceito percorrem as ruas com seus fatos de cores coloridas, há bairros proibidos onde o turista não deve entrar mas de tudo o resto transpira uma atmosfera de franqueza e alguma seriedade. Não senti qualquer pressão policial, pelo contrário vê-se pouca polícia e são de trato gentil. Ignoramos heroicamente aquela língua com muitos Kapas, tentamos falar um "espanholez" com gestos e lá vai dando para as necessidades. A costa é bonita mas muito industrializada, as Astúrias sim, falésias recortadas, mar azul, as próximas férias...